3 de abril de 2011

BOLSONARO NÃO É HITLER! E O BRASIL É CADA VEZ MAIS TOLERANTE!

FONTE: JORNAL OPÇÃO
 
O deputado federal atacou gays e negros. A sociedade brasileira, ao criticá-lo, mostrou que é madura. Melhor do que cassar a voz do parlamentar é perceber que o país é tolerante.

A foto pequena de Jair Bolsonaro mostra seu peso político no país!

Stálin e Hitler foram tão terríveis que homens cruéis como o cubano Fidel Castro e o líbio Muammar Kadafi parecem apenas porteiros do Hades. Deixemos Stálin, o homem que autorizou a morte de 30 milhões de soviéticos, e fiquemos com Hitler, o líder do nazismo alemão. Na Primeira Guerra Mundial, na década de 1910, o austríaco lutou pela Alemanha, como soldado e, depois, cabo. Era totalmente anódino. Em dez anos, entre 1920 e 1930, tornou-se alguém. No início da década de 1920, depois de uma arruaça travestida de tentativa de golpe, em Munique, foi preso. Na prisão, com o auxílio de Rudolf Hess, escreveu o livro “Minha Luta” — um repositório de ideias mal costuradas e furtadas aqui e ali. Mas nessa obra, em que pesem as deficiências intelectuais flagrantes do autor, há sinais do que seria o nazismo. O “filósofo” mambembe, discípulo tardio de Gobineau, associa, equivocada mas propositadamente, judeus e bolchevismo soviético, sugere a tese do “espaço vital” (para a Alemanha crescer, militar e economicamente, precisava incorporar territórios de outros países, até chegar às férteis terras da Ucrânia). Se não tivesse chegado ao poder, sem a chance de colocar suas ideias em prática, Hitler não obteria, talvez, nem mesmo uma nota no rodapé dos livros de história. Entretanto, ao ser subestimado pelos intelectuais, que o consideravam tão-somente um canastrão político, e ao elaborar um discurso que aplacou o ressentimento do povão e das classes médias, atraindo aos poucos o interesse dos ricos, Hitler tornou-se o homem mais forte da Alemanha. Não chegou ao poder por meio de golpe. Foi convocado pelos líderes alemães.

Em 1933, quando Hitler chegou ao poder, a esquerda mundial era controlada, com mão de ferro, pelo governo soviético de Stálin. Pois Stálin estabelecera a política de que os comunistas não deveriam se aliar, em hipótese alguma, aos socialdemocratas, apontados, então, como social-fascistas (não custa lembrar que, quando o PT surgiu, na década de 1980, o PC do B, então stalinista islâmico, atacava o partido com virulência, chamando-o de “reformista” e “socialdemocrata”). Como a esquerda se dividiu, com comunistas atacando socialdemocratas, criando uma ambiente de confusão ideológica, ficou mais fácil para Hitler impor seus discurso. Ele era visto, pelos comunistas, como um mal menor. O mal maior era a socialdemocracia.
Experimentados, os socialdemocratas sabiam que o líder nazista era o ovo que, breve, se tornaria serpente. Como só o poder revela o político, não demorou e Hitler pôs as mangas de fora. Mandou incendiar o Parlamento e, ao pôs a culpa nos comunistas, pôde proscrevê-los e persegui-los. Em pouco tempo, sob aplauso do culto povo alemão, leitor de Goethe e Thomas Mann, amante de Beethoven e Mozart, Hitler assenhorou-se do poder e destruiu todas as oposições. Criou um regime totalitário e pôs-se a criar novos “inimigos”. Negros não eram aceitos no país. Portadores de necessidades especiais eram assassinados por médicos e especialistas que criaram um “eficiente” programa de eutanásia. Homossexuais, vistos como desviantes, eram atacados pelos nazistas da SS (ainda que alguns integrantes da SS fossem homossexuais). Ciganos, apontados como sub-raça, eram expurgados e, mais tarde, mortos nos campos de extermínio. Judeus, apresentados como sub-raça e pais do bolchevismo soviéticos, foram perseguidos de modo implacável, perdendo suas lojas, empregos e, mais tarde, a vida, nos campos de extermínio, como Auschwitz. Os alemães estavam hipnotizados pela “razão” nazista? Não. Historiadores equilibrados, como Ian Kershaw — o melhor biógrafo de Hitler —, registraram que o povo alemão sabia o que estava acontecendo e, sobretudo, jamais deixou de aprovar as ações do líder nazista. Ninguém, nem mesmo Hitler, hipnotiza um povo inteiro — e por 12 anos. Hitler talvez seja produto da tradição autoritária-autocrática alemã. Só que levou a tradição ao paroxismo.

No poder, assim como fez Stálin na União Soviética, Hitler criou uma nova “razão” e a sociedade a aceitou, alegre e celeremente, sobretudo porque o governo nazismo levou a um renascimento econômico da Alemanha. Quando se cria uma nova razão, e esta razão se torna coletiva, digamos administrativa, poucos discordam dela. Torna-se senso comum. A perseguição a judeus e ciganos só era crime quando visto de fora da Alemanha. Na sociedade alemã, nas escolas, nas ruas, nas empresas, era “norma”, ou seja, legalidade. Aqueles que não estavam contra os judeus estavam contra as leis alemãs do nazismo. Na década de 1960, o serviço secreto israelense, o Mossad, depois de ter recebido informações de um cego — porque os agentes haviam falhado —, capturou o alemão Adolf Eichmann, o nazista que enviava judeus para Auschwitz. Numa operação de rara eficiência, o Mossad levou Eichmann para uma casa, em Buenos Aires, e o transportou, num avião, para Israel. Os israelenses o julgaram, com grande estardalhaço, e o condenaram à morte. Não havia, possivelmente, outra sentença possível. Entretanto, o julgamento foi assistido por uma filósofa do gabarito de Hannah Arendt, judia alemã e amante de um nazista, o filósofo Martin Heidegger, nos tempos de estudante.
Convocada pela prestigiosa revista “New Yorker”, Arendt deslocou-se para Jerusalém e escreveu ensaios portentosos — e muito criticados, inclusive pelo brilhante historiador Raul Hilberg —, mais tarde, compilados no livro “Eichmann em Jerusalém — Um Relato Sobre a Banalidade do Mal” (Companhia das Letras, 343 páginas). Apresentado como um “monstro”, Eichmann, no dia-a-dia da Alemanha e da Argentina, dava prova de ser um cidadão comum, como os outros. Pelo que fez, ao enviar conscientemente pessoas para a morte, ao organizar o crime do Estado, não era um homem comum? Aí é que está: era mesmo um homem comum, com escassa sofisticação, intelectualmente medíocre, embora fosse um funcionário público eficiente. Ao enviar as pessoas para serem assassinadas, no campo de extermínio, cumpria ordens não necessariamente de Hitler ou Hïmmler — e sim da sociedade política e administrativa de uma nação, a Alemanha. Ele tinha consciência do que estava fazendo, mas, do ponto de vista estritamente legal, das instituições de seu país, cumpria a lei — com esmero. O Mal havia sido elevado a política de Estado e se tornara aceito socialmente. Então, um homem simples como Eichmann, um administrador, tinha culpa, pois, ainda que seguindo regras do Estado, tinha consciência, mínima que fosse, de que seus atos feriam a Humanidade. Eichmann era culpado, ainda que subordinado a uma estrutura pública, criada pelo nazismo, que dizia que estava fazendo o “certo”.

A peroração acima tem a ver com o debate, quase sempre infrutífero, sobre as “ideias” do deputado federal Jair Bolsonaro a respeito de negros e gays. A palavra “ideias” está entre aspas porque os termos usados pelo parlamentar do PP — um dos partidos intelectual e ideologicamente mais atrasados do país — não são exatamente ideias. São palavras, quase sempre soltas ao sabor do momento. “Radicais” chegaram a dizer que Bolsonaro “é” o Hitler brasileiro. Não é. O que diz não tem a sofisticação do nazismo — nem há indícios de que tem seguidores fiéis. O deputado está se tornando o Juruna da direita bárbara.
Entretanto, se Bolsonaro pouco tem a ver com Hitler e se a sociedade brasileira não é racista — como analisam os estudiosos Demétrio Magnoli (“Uma Gota de Sangue — História do Pensamento Racial”) e Ali Kamel (“Não Somos Racistas”) —, e homofóbica, o deputado do Rio de Janeiro tem o direito de achincalhar negros e gays? O politicamente correto tem feito mal, porque contribui para reduzir a criatividade e o humor e se tornou um ataque à liberdade, mas, em alguns casos, é preciso examinar com mais cuidado. No caso de Bolsonaro, apesar de o deputado não planejar criar instituições racistas ou homofóbicas — distanciando-se, pois, do nazismo —, não se trata de discutir o politicamente correto. Mas de pensar que está ofendendo seres humanos, de forma rasteira, e mesmo incentivando, ainda que indiretamente, malucos a agredirem sobretudo homossexuais.

A cantora Preta Gil perguntou a Bolsonaro qual seria sua reação se seu filho namorasse uma mulher negra. O deputado, no quadro “O Povo Quer Saber”, do programa CQC, da TV Bandeirantes, reagiu com grosseria: “Eu não corro esse risco e meus filhos foram muitos bem-educados. E não viveram em ambiente como lamentavelmente é o teu”. Se quisesse, o parlamentar poderia ter sugerido que não estava falando do ambiente pessoal da artista, filha do cantor Gilberto Gil, mas do ambiente artístico — e aí compraria outra briga, mas evitaria processo judicial específico. Mas, ao perceber que havia cometido um crime ao agredir “os” negros, atacou seu segundo alvo preferencial (o primeiro é a esquerda, no que tem muita razão), os gays. “Eu entendi isso daí [que a pergunta era sobre gays, não sobre negros]. Essa se encaixa na resposta que eu dei.” Por que ninguém diz uma palavra sobre a baixa qualidade do programa, que abre espaço para debates inúteis? Por que todos gostam do que é fútil, inclusive Bolsonaro? Não sabemos.

Trata-se de cassar a voz de Bolsonaro? Talvez não. A reação pública da sociedade, criticando duramente as opiniões do deputado, certamente é suficiente. A intolerância foi atacada pela arma mais adequada — a tolerância da maioria. No Brasil, pelo menos, Bolsonaro não tem chance de se tornar Hitler. Portanto, um viva à democracia, o único regime que permite o convívio, ainda que sem excluir o conflito, das diferenças políticas, filosóficas, sexuais, comportamentais...